O
império do consumo: esta ditadura da uniformização obrigatória impõe, no mundo
inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do
consumidor exemplar.
A
produção em série, em escala gigantesca, impõe em todo lado as suas pautas
obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais
devastadora que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um
modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor
exemplar.
O
sistema fala em nome de todos, dirige a todos as suas ordens imperiosas de
consumo, difunde entre todos a febre compradora; mas sem remédio: para quase
todos esta aventura começa e termina no écran do televisor. A maioria, que se
endivida para ter coisas, termina por ter nada mais que dívidas para pagar
dívidas as quais geram novas dívidas, e acaba a consumir fantasias que por
vezes materializa delinquindo.
Os
donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida
efémera, que se esgota como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens
disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a
publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas para que outro mundo vamos
mudar-nos?
A
explosão do consumo no mundo atual faz mais ruído do que todas as guerras e
provoca mais alvoroço do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio
turco: quem bebe por conta, emborracha-se o dobro. O carrossel aturde e
confunde o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no
tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo soa muito, tal como o tambor,
porque está vazia. E na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a
festa, o borracho acorda, só, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos
partidos que deve pagar.
A
expansão da procura choca com as fronteiras que lhe impõe o mesmo sistema que a
gera. O sistema necessita de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como
os pulmões necessitam o ar, e ao mesmo tempo necessitam que andem pelo chão,
como acontece, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.
O
direito ao desperdício, privilégio de poucos, diz ser a liberdade de todos.
Diz-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa
dormir as flores, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são
submetidas a luz contínua, para que cresçam mais depressa. Nas fábricas de
ovos, as galinhas também estão proibidas de ter a noite. E as pessoas estão
condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este
modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria
farmacêutica. Os EUA consomem a metade dos sedativos, ansiolíticos e
demais drogas químicas que se vendem legalmente no mundo, e mais da metade das
drogas proibidas que se vendem ilegalmente, o que não é pouca coisa se se
considerar que os EUA têm apenas cinco por cento da população mundial.
“Gente
infeliz os que vivem a comparar-se”, lamenta uma mulher no bairro do Buceo,
em Montevideo. A dor de já não ser, que outrora cantou o tango, abriu passagem
à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. “Quando não tens
nada, pensas que não vales nada”, diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, de
Buenos Aires. E outro comprova, na cidade dominicana de San Francisco de
Macorís: “Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas e
vivem suando em bicas para pagar as prestações”.
Invisível
violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade
manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todo lado as suas
pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais
devastadora que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um
modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor
exemplar.
O consumidor exemplar
é o homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade,
confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica The
Lancet, na última década a “obesidade severa” aumentou quase 30% entre a
população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças
norte-americanas, a obesidade aumentou uns 40% nos últimos 16 anos, segundo a
investigação recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do
Colorado.
O
país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat
free tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar
só sai do automóvel par trabalhar e para ver televisão. Sentado perante o
pequeno écran, passa quatro horas diárias a devorar comida de plástico.
Triunfa
o lixo disfarçado de comida: esta indústria está a conquistar os paladares do
mundo e a deixar em farrapos as tradições da cozinha local. Os costumes do bom
comer, que veem de longe, têm, em alguns países, milhares de anos de
refinamento e diversidade, são um patrimônio coletivo que de algum modo está
nos fogões de todos e não só na mesa dos ricos.
Essas
tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão a
ser espezinhadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único:
a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast food. A plastificação da
comida à escala mundial, obra da McDonald’s, Burger King e outras fábricas,
viola com êxito o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado,
porque na boca a alma tem uma das suas portas.
O
campeonato mundial de futebol de 98 confirmou-nos, entre outras coisas, que o
cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola brinda eterna juventude
e o menu do MacDonald’s não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso
exército de McDonald’s dispara hambúrgueres às bocas das crianças e dos adultos
no planeta inteiro. O arco duplo desse M serviu de estandarte durante a recente
conquista dos países do Leste da Europa. As filas diante do McDonald’s de
Moscou, inaugurado em 1990 com fanfarras, simbolizaram a vitória do ocidente
com tanta eloquência quanto o desmoronamento do Muro de Berlim.
Um
sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega
aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. A McDonald’s
viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em
1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama a Macfamília,
tentaram sindicalizar-se num restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante
fechou. Mas em 1998, outros empregados da McDonald’s, numa pequena cidade
próxima a Vancouver, alcançaram essa conquista, digna do Livro Guinness.
As
massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade
conseguiu o que o esperanto quis e não pôde. Qualquer um entende, em qualquer
lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quarto de século, os
gastos em publicidade duplicaram no mundo. Graças a ela, as crianças pobres
tomam cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite, e o tempo de lazer vai-se
tornando tempo de consumo obrigatório.
Tempo
livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor
e o televisor tem a palavra. Comprados a prazo, esse animalejo prova a vocação
democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e
ricos conhecem, assim, as virtudes dos automóveis do último modelo, e pobres e
ricos inteiram-se das vantajosas taxas de juros que este ou aquele banco
oferece.
Os
peritos sabem converter as mercadorias em conjuntos mágicos contra a solidão.
As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o
perfume te beija e o automóvel é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo
fez da solidão o mais lucrativo dos mercados.
As
angústias enchem-se atulhando-se de coisas, ou sonhando fazê-lo. E as coisas
não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social,
salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves
que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te
escolhem e te salvam do anonimato multitudinário.
A
publicidade não informa acerca do produto que vende, ou raras vezes o faz. Isso
é o que menos importa. A sua função primordial consiste em compensar
frustrações e alimentar fantasias: Em quem o senhor quer converter-se comprando
esta loção de fazer a barba? O criminólogo Anthony Platt observou que os
delitos da rua não são apenas fruto da pobreza extrema. Também são fruto da
ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide
decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Sempre ouvi dizer que o
dinheiro não produz a felicidade, mas qualquer espectador pobre de TV tem motivos
de sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão parecido que a diferença
é assunto para especialistas.
Segundo
o historiador Eric Hobsbawm, o século XX pôs fim a sete mil anos de vida humana
centrada na agricultura desde que apareceram as primeiras culturas, em fins do
paleolítico. A população mundial urbaniza-se, os camponeses fazem-se cidadãos.
Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as
maiores cidades do mundo e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna
de exportação, e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os
subúrbios. Eles acreditam que Deus está em toda parte, mas por experiência
sabem que atende nas grandes urbes.
As
cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos,
os que esperam veem passar a vida e morrem a bocejar; nas cidades, a vida
ocorre, e chama. Apinhados em tugúrios [casebres], a primeira coisa que
descobrem os recém chegados é que o trabalho falta e os braços sobram.
Enquanto
nascia o século XIV, frei Giordano da Rivalto pronunciou em Florença um elogio
das cidades. Disse que as cidades cresciam “porque as pessoas têm o gosto de
juntar-se”. Juntar-se, encontrar-se. Agora, quem se encontra com quem?
Encontra-se a esperança com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo? E as
pessoas encontram-se com as pessoas? Se as relações humanas foram reduzidas a
relações entre coisas, quanta gente se encontra com as coisas?
O
mundo inteiro tende a converter-se num grande écran de televisão, onde as
coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam
os espaços públicos. As estações de ônibus e de comboios, que até há pouco eram
espaços de encontro entre pessoas, estão agora a converter-se em espaços de
exibição comercial.
O
shopping center, ou shopping mall, vitrine de todas as vitrines, impõe a sua
presença avassaladora. As multidões acorrem, em peregrinação, a este templo
maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as
coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora
submete-se ao bombardeio da oferta incessante e extenuante.
A
multidão, que sobe e baixa pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os
manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago, e
para ver e ouvir não é preciso pagar bilhete. Os turistas vindos das povoações
do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas bênçãos da felicidade
moderna, posam para a foto, junto às marcas internacionais mais famosas, como
antes posavam junto à estátua do grande homem na praça.
Beatriz
Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao
shopping center, como antes iam ao centro. O tradicional passeio do fim de
semana no centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes
centros urbanos. Lavados, passados e penteados, vestidos com as suas melhores
roupas, os visitantes vêm a uma festa onde não são convidados, mas podem ser
observadores. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que
percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma
paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas.
A
cultura do consumo, cultura do efêmero, condena tudo ao desuso mediático. Tudo
muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade de vender.
As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras
coisas de vida fugaz. Hoje a única coisa que permanece é a insegurança, as
mercadorias, fabricadas para não durar, resultam ser voláteis como o capital
que as financia e o trabalho que as gera.
O
dinheiro voa à velocidade da luz: ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã,
quem sabe, e todo trabalhador é um desempregado em potencial. Paradoxalmente,
os shopping centers, reinos do fugaz, oferecem com o máximo êxito a ilusão da
segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem
dia e sem memória, e existem fora do espaço, para além das turbulências da
perigosa realidade do mundo.
Os
donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida
efêmera, que se esgota como esgotam, pouco depois de nascer, as imagens que
dispara a metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade
lança, sem tréguas, no mercado. Mas a que outro mundo vamos nos mudar? Estamos
todos obrigados a acreditar no conto de que Deus vendeu o planeta a umas
quantas empresas, porque estando de mau humor decidiu privatizar o universo?
A
sociedade de consumo é uma armadilha caça-bobos. Os que têm a alavanca simulam
ignorá-lo, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande
maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para
garantir a existência da pouca natureza que nos resta.
A
injustiça social não é um erro a corrigir, nem um defeito a superar: é uma
necessidade essencial. Não há natureza capaz de alimentar um shopping center do
tamanho do planeta.
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