Algumas considerações
de Aziz Ab’Saber acerca do que se pode chamar metabolismo urbano nas grandes
cidades, numa perspectiva brasileira para os anos vindouros.
A maior parte dos
estudos de ecologia urbana, realizados no passado até início dos anos 70,
silenciava sobre as consequências negativas da excessiva concentração humana em
espaços relativamente reduzidos. Como não existia uma consciência ambiental
mais difundida na sociedade e, sobretudo, na mídia, numerosos problemas do
ambiente urbano-industrial eram relegados a um tratamento meramente técnico
como se fossem coisas menores, pouco dignas de consideração acadêmica.
Constatou-se, inclusive, ao princípio, uma forte reação das elites em relação
àqueles que se atreviam a aprofundar a discussão nas questões ambientais e
ecológicas.
A grande mudança
ocorrida no tratamento da ecologia urbana, nos últimos vinte anos, deveu-se à
emergência da consciência ambientalista ecológica. Pode-se dizer que a nova
ecologia urbana compreende o estudo das formas de projeção da sociedade e das
funções econômico-sociais sobre o espaço e o ambiente das cidades, envolvendo a
funcionalidade do organismo urbano em todos os sentidos. Nessas condições,
faz-se necessária uma seriedade maior dos acadêmicos, técnicos e governantes,
no conhecimento integrado dos ecossistemas urbanos. De agora em diante, todas
as lideranças vinculadas às tarefas de gerenciamento de uma determinada porção
do território têm de visualizar o mosaico dos sistemas ecológicos que
participam da organização da dinâmica do espaço de sua responsabilidade mais
direta.
Não se trata de excluir
os estudos de ecologia social metropolitana, mas de realizar acréscimos
indispensáveis para o entendimento de propostas objetivas destinadas à solução
das questões ambientais nas áreas de grandes concentrações de homens e
atividades econômicas do mundo urbano-industrial. Abordagens que modernamente,
são designadas por estudos de metabolismo urbano, quer se trate de Hong Kong ou
de Paris, com um máximo de aplicabilidade para grandes cidades, como é o caso
de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Manaus ou Porto Alegre. Sob a condição
de que ocorra sempre uma interação e imbricação entre a ecologia social e as
peculiaridades do metabolismo urbano, em cada uma dessas grandes aglomerações
humanas.
A única estratégia para
se crescer nos problemas da ecologia urbana, entendida mais realística e
participativamente, reside em um tratamento permanente do metabolismo urbano.
Na verdade, as questões referentes às desigualdades sociais – (re)educação das
massas, desemprego, transportes coletivos e metabolismo urbano –, formam um
quinteto central entre os problemas a serem considerados para garantir a
sustentabilidade do mundo urbano-industrial, considerado na sua funcionalidade
e em seu futuro.
Na expressão
metabolismo urbano estão incluídos todos os processos de saneamento básico, dotados
de tecnicidade específica.
O metabolismo urbano
volta-se ao ambiente total de organismo metropolitano – antevisto do centro
para a periferia e vice-versa – onde se processa o dia-a-dia dos homens em suas
funções biológicas, assim como nas multivariadas funções de trabalho,
circulação, consumismo e práticas sociais e culturais. Razão pela qual os
estudos sobre o metabolismo urbano, no contexto das grandes metrópoles do mundo
subdesenvolvido, passam a ter valor de referência e de propostas balanceadas
para garantir a boa funcionalidade da vida metropolitana. Nesse sentido, há que
se perceber e avaliar a diversidade e o volume de tudo aquilo que entra no
organismo urbano (água potável, energia solar, precipitações pluviais, água
para indústrias, alimentos, matéria-prima, produtos industrializados e homens).
A seguir, como tarefa básica, há que se atentar para os fluxos internos que
representam a própria funcionalidade e dinâmica da metrópole.
Trata-se de uma
fantástica sobreposição de metabolismos que se somam e interagem: o metabolismo
industrial, específico para cada tipo de fábrica; o metabolismo de circulação
interna de veículos de diferentes portes e potencial poluitivo; uma circulação
externa que perpassa pelo organismo urbano, para atingir outras regiões e
quadrantes do país; e um sistema de drenagem urbana para afunilizar e canalizar
esgotos domésticos e efluentes industriais, até estações de tratamento d’águas
ou cursos d’água de reduzido volume hídrico, sujeitos a uma enorme e permanente
poluição. Para não falar na gigantesca trama das ligações energéticas que garante
a movimentação das indústrias, a iluminação pública, a funcionalidade do
comércio, desde o menor dos botequins até os grandes shoppings centers, e
penetra pelas paredes das casas garantindo o funcionamento das luminárias e dos
artefatos eletrodomésticos.
Poucos se dão conta,
ainda, do que seja o gigantismo do sistema de águas tratadas para múltiplos
usos no espaço total do organismo urbano metropolitano. Este é um setor em que,
muitas vezes, a velocidade da urbanização dos espaços públicos apresenta
descompasso em relação às ligações. Assim, asfaltam-se ruas e, logo depois, é
necessário recortar o asfaltado para ligações de encanamentos para novas
residências que se multiplicam em todos os tipos de áreas e terrenos. Para
poder fazer com que água tratada chegue às favelas, a administração pública usa
artifícios muitas vezes impensados, colocando tubos plásticos corrugados, que
seguidamente se rompem deixando extravasar o precioso e disputado líquido. Tudo
isso provocando grandes dificuldades de gerenciamento, ao par com repetidas
reclamações e protestos da comunidade.
O metabolismo dos
grandes organismos urbanos se completa por uma série de diferentes tipos de
descargas, relacionadas a processos biológicos, atividades industriais e
comerciais, circulação de veículos e resíduos de todos os tipos. Tudo o que
entrou e transitou através de fluxos complexos terá de sair sob a forma de
materiais secundários, profundamente modificados pela metabolização. E nesse
sentido, numa grande metrópole, com milhões de habitantes acontecem incontáveis
processos metabólicos derivados das próprias condições biológicas dos homens,
de suas inúmeras atividades no mundo urbano, das tecnologias que respondem pela
industrialização e do uso de veículos automotores. São milhares ou milhões de
automóveis que transitam no corpo urbano metropolitano em deslocações quase
contínuas – por todas as horas do dia, dos meses e dos anos – expelindo gases
para a atmosfera, criando impactos altamente negativos ao ambiente urbano.
Efluentes industriais, na maior parte dos casos não tratados, escorrem para
riachos e córregos, chegando aos rios de baixo volume d’água (como os casos do
Tietê ou do Pinheiros, em São Paulo). A pluma das chaminés das instalações
industriais acrescenta gases e particulados ao espaço aéreo urbano
metropolitano o qual, de per si, já está saturado pelas emanações dos canos de
descargas dos veículos automotores. Por outro lado, cerca de 75% dos resíduos
sólidos no Brasil são depositados em lixões empíricos a céu aberto: vale assinalar
que não existe forma de descarte de lixo mais arcaica e incomodante do que
estes lixões: neles é empilhado, caoticamente, o lixo orgânico doméstico,
misturado a papéis, papelões, plásticos, vidros e latas. Materiais que, de
resto, incluem grande quantidade de componentes não degradáveis ou de difícil e
demorada degradação. Assinale-se, ainda, a presença do lixo industrial, do lixo
hospitalar e dos entulhos da construção civil.
O lixo urbano
constitui-se numa questão de saneamento básico de difícil solução. Para se ter
uma ideia, numa cidade como São Paulo, estima-se em oito mil toneladas de lixo
diário a ser descartado. No Brasil, fala-se em 242 mil toneladas por dia de
lixo. O pior é que se trata de um tipo obrigatório de descarte que faz crescer
e multiplicar os sítios para a postagem. Sendo, ademais, um tipo terminal de
metabolismo urbano que não apresenta condições para ser exportado para áreas
distantes. Lixões ou aterros sanitários, por melhor que sejam manejados, acabam
por desvalorizar os espaços ao derredor. Os odores das emanações gasosas do
lixo (metano) e do chorume (líquido preto gerado do próprio lixo, de natureza
altamente poluente) empestam os ares dos arredores dos lixões, ao mesmo tempo
em que acontece proliferação de ratos e insetos. Enfim, um foco de insanidade
que coloca em perigo a saúde pública regional. E, por último, uma pequena área
de atração dramática para os desesperados catadores de lixo, que tentam se
apoiar em uma das mais tristes estratégias de sobrevivência exibidas em países
subdesenvolvidos.
Em áreas metropolitanas
de grande adensamento construtivo não existem condições psicossociais e
administrativas para os municípios vizinhos aceitarem o lixo daqueles que não
têm mais espaços disponíveis para a postagem dos resíduos sólidos produzidos em
seu próprio território. Essa dificuldade deriva, sobretudo, da valorização, às
vezes exagerada, da terra urbana e da expectativa de lucros pelos proprietários
de glebas periurbanas municipais. A verdade é que os lixões aviltam os preços
dos espaços fundiários congelados para futuros loteamentos. Disso resulta uma
escolha socialmente injusta, ou seja, a colocação de lixões em terrenos baldios
nas proximidades das favelas ou bairros carentes.
Em algumas cidades
brasileiras, os depósitos de lixo foram colocados em sítios de várzeas,
sujeitos a inundações frequentes; acontece assim um ampliado chorume que se
expande sazonalmente por um largo círculo da região.
Assim, desde o extremo
norte do Brasil até o extremo sul, observam-se problemas relacionados à
necessidade inadiável de descarte de resíduos sólidos. Note-se, porém, que,
mesmo no Primeiro Mundo, existem problemas e dúvidas sobre o tipo de tratamento
a ser dado aos descartes dos resíduos sólidos de sua complexa vida urbano-industrial.
A literatura disponível
para o estudo do metabolismo das grandes cidades brasileiras é, infelizmente,
extremamente reduzida. Existe, entretanto, uma espécie de bibliografia
“fantasma”, de caráter eminentemente técnico, que não é encontrada em bibliografias,
mas que permanece nos arquivos mortos ou estantes mal cuidadas de repartições
burocráticas. Nos últimos tempos, as empresas de consultoria têm tido um
cuidado especial na reunião desse material alternativo, considerado essencial
para estudos, compilações e projetos. Note-se, porém, se tratar de relatórios
técnicos que, embora relevantes, foram elaborados em diferentes épocas e
lugares e se referem a setores restritos. Notícias de jornais, ainda que
fragmentárias, são importantes para a cronologia dos eventos mais berrantes,
aqui considerados como processos espasmódicos: grandes enchentes, chuvaradas
excepcionais, escorregamentos de terras em áreas urbanas, estiagens
catastróficas para a agricultura e a pecuária regionais e, sobretudo, os
períodos de grandes secas ou repiquetes de secas nos sertões nordestinos, com
fortes implicações sociais para o mundo urbano regional ou nacional.
Num país de memória
curta como o nosso não é de se desprezar os registros feitos em periódicos,
seja da grande imprensa, seja nos jornais locais, muito ativos, em nossas
diferentes regiões. Mais recentemente, na era da televisão e da informatização,
aparecem modos mais vivos e permanentemente (re)visitáveis para constatações
sobre ocorrências de catástrofes com suas dramáticas consequências para as
comunidades.
Falando-se de
metabolismo urbano, cada caso é um caso. A magnitude dos problemas depende das
condições do sítio urbano, da hidrologia e da fisiologia da paisagem.
Mais do que isso:
depende da estrutura, do volume e da funcionalidade do organismo urbano.
Pressupõe inquirições holísticas e quantitativas. Não se devem confundir as
pesquisas sobre o metabolismo urbano com alguns problemas específicos de cada
centro urbano; mas não é possível ignorá-los. Há numerosos exemplos disso.
Vejamos alguns.
As enchentes do rio
Itajaí, SC, no sítio urbano de Blumenau; a poluição cumulativa da Baía de
Guanabara e da Baixada Santista; as dificuldades de Santos e São Vicente, (SP);
em relação aos resíduos sólidos; a criticidade das condições climáticas locais
de Cubatão, (SP), Volta Redonda, (RJ), Votorantim, SP, cidades do ABC paulista,
Paulínia, (SP); e região industrial situada ao norte de Porto Alegre, (RS); as
dificuldades de cidades muito próximas de indústrias ditas “potencialmente
poluidoras” (Jacareí, Paulínia, Sorocaba, Salto, Santo André, São Caetano,
Guaíba). Na região de Cubatão-Piassaguera algumas indústrias poluem o ar, os
rios, o solo e afetam a saúde dos trabalhadores, crianças e velhos. O custo
real dos processos difusos de poluição aérea de Cubatão e Serra da Paranapiacaba
jamais poderão ser avaliados.
Estudos de metabolismo
urbano, por tudo isso, interessam profundamente às prefeituras municipais; de
tal modo que as mesmas podem criar facilidades ao desenvolvimento das pesquisas
por parte de jovens universitários. Face ao caráter fragmentário do
conhecimento, dados e informações, a primeira tarefa para efetivação de um
estudo reside no rastreamento de relatórios e informes não encontráveis em
bibliotecas públicas ou em acervos universitários. E a própria reunião desses
dados dispersos representa uma colaboração significativa para as autoridades
públicas interessadas em dominar o conhecimento objetivo da dinâmica interna de
sua cidade.
É difícil pensar que
não existam ainda bons e atualizados estudos sobre metabolismo urbano de
Manaus, Salvador ou Fortaleza. Inexplicável, ainda, a não disponibilidade de
trabalhos desse tipo sobre cidades brasileiras localizadas em espaços
insulares, tais como Santos-São Vicente, Florianópolis, Vitória e São Luiz do
Maranhão. E outras localidades e sítios similares, onde o metabolismo urbano se
complica em função da intervenção diária das marés ou da oscilação sazonal das
cheias, exiguidade dos espaços urbanizáveis, interferência da especulação
fundiário-urbana e congelamento planejado de vazios intra-urbanos.
Enfim, convém trabalhar
desde já para esclarecer e conscientizar autoridades e formadores de opinião,
com o objetivo de o porvir do ambiente urbano brasileiro não vir a se
constituir num caos e num exemplo dramático de uma nação que esqueceu de pensar
o seu futuro.
Fonte: Aziz Ab’Saber -
Geógrafo
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